A expressão popular estampada no título deste artigo remonta à Antiguidade, mais precisamente ao filósofo Platão ao descrever os últimos instantes de vida de Sócrates. Mas ela se aplica com incômoda precisão ao que parece estar vivendo a Ford no Brasil, hoje apenas a sexta dentre as principais montadoras aqui operando e que foi a líder até a era do Geipot, depois, terceira por largo espaço de tempo até meados dos 90.
Parece mais que sugerir esse ocaso tristonho as notícias do recente Salão de Automóvel de Detroit, ao destacarem que o novo EcoSport, pequeno SUV urbano aqui gestado e lançado, será o veículo de entrada da marca nesse segmento de notável elasticidade no país do Norte. Lá, instrumentado em tecnologia e expressivas alterações de forma, das quais não será usufrutuária a versão brasileira, que continuará a ser como a atual, à exceção dos cosméticos de praxe.
Aqui no Brasil, tanto quanto por aí afora, a Ford continua fiel ao mais recôndito dos conceitos do seu fundador, que erigiu a simplicidade e a repetição exaustiva do seu modelo emblemático, o Ford T, apelidado “Thin Lizzy” ou simplesmente “O Carro”, quando não percebia que seu concorrente de fígado, a GM, pelo seu mais longevo e importante chairman, Alfred Sloan, definia como estratégia de produto e de presença no mercado a adequação de sua linha a “cada bolso e cada objetivo de uso”.
Se com essa diretiva existencial Henry Ford pretendia dar plena economicidade ao custo de produção, além de formidável acessibilidade à massa de consumidores que inaugurava a mobilidade automotiva, por outro lado se colocava refém de sua própria arrogância e descabida pretensão de que ao mercado caberia apenas e tão somente submeter-se ao que ele e sua marca determinavam como linha desejável de consumo.
A GM, que assumiu a liderança sobre a Ford no final dos anos 20 do século passado –para nunca mais perdê-la –, e mais recentemente os fabricantes japoneses fizeram a Ford amargar, mesmo nos Estados Unidos, posição caudatária em relação não apenas à GM, mas, também, à Toyota, cujo fundador foi a Detroit aprender como funcionava a produção em massa inaugurada exatamente pela Ford!
Como que a trazer para si sempre a pretensa vanguarda nas ideias pioneiras no terreno da chamada mobilidade, a Ford se apresenta como novo Colombo de mares desconhecidos, penetrando em modalidades novas que vão do aluguel de bicicletas ao chamado “car sharing” e ao empenho total nos ambientes do carro elétrico e do próprio carro autônomo – campos em que pretende lhe seja reconhecida a imagem imutável, desbravadora e singular, que lhe legou o fundador.
Mas, tudo isso – se se tornar uma realidade no futuro – será geograficamente limitado aos Estados Unidos e Europa e muito provavelmente à China e Índia. O Brasil – ora o Brasil! – continuará a ser apenas uma “cash cow” de pequenos e acomodados currais, onde a sua presença continuará a ser uma cansativa repetição de imobilismo ou, no máximo, de letárgico deslocamento.
O caso do EcoSport – se confirmado esse fado indicado pelas notícias, ou seja, de nenhuma alteração na esteira do que será o modelo americano – trás de volta, por um lado, a máxima do velho criador: “Meus clientes poderão ter um Ford em qualquer cor…desde que seja preto”, ou ainda a repetição, por razões quaisquer, do lamentável atraso, logo após o desmantelamento da Autolatina, do lançamento e assim mesmo desatualizado do seu pequeno vencedor na Europa, o Fiesta.
Enquanto isso, os italianos, que lhe tiraram quase 10 pontos de porcentagem em penetração nos anos 90, continuavam a nadar com largas e imbatíveis braçadas. A contemplativa e conformista posição da Ford diante de tudo isso poderia dar margem a um novo personagem de Fellini, calcado conceitualmente na sempre atual trama do “E La Nave Va…” do genial diretor.
Para deixar ainda mais atônitos aqueles que teimam em acreditar nos princípios da marca e na sua sustância competitiva para o futuro, especificamente no que diz respeito à sua afamada busca de eficiência produtiva e financeira, é de se perguntar em que capítulo de sua tradição se insere a recentíssima decisão de desistir da instalação de planta no México, a isso “forçada” pelo esquisito novo presidente americano, sr.Trump. Onde ?!
E, aqui no Brasil, haverá alguém por todos os títulos de representatividade oficial intitulado, quem pergunte por que a Ford, beneficiária do Inovar-Auto e outras “invenções”, trata o EcoSport gerado pela inteligência automotiva brasileira de forma tão descuidada e desatenciosa?!
Luiz Carlos Mello, consultor e ex-presidente da Ford Brasil