Nossa repórter passou um dia ouvindo mulheres que trabalham em todas as etapas da produção no Complexo Ayrton Senna
São José dos Pinhais, PR – O desafio lançado pela reportagem de AutoData: conversar apenas com mulheres na linha de produção de veículos de passeio da Renault, a CVP, Curitiba Veículos de Passeio. Tanto líderes de partes deste processo como suas assistentes eram do sexo feminino. As interação, realizada de forma contundente, assertiva, pormenorizada e atenciosa ao longo de um dia inteiro, as teve como interlocutoras qualificadas.
Ou seja: é a diversidade e a inclusão na prática, com as mulheres ocupando estas posições caso as oportunidades de trabalho fossem ofertadas de maneira igualitária em todas as empresas, em todos os setores.
Ao passar por estamparia, pintura e montagem, além do Espaço Metaverso e pelo laboratório de impressões em 3D, oito mulheres relataram o funcionamento da fábrica. Isto na maior fábrica da Renault na América Latina, com capacidade para sessenta veículos por minuto – para efeito de comparação na Colômbia são catorze e, na Argentina, há um compartilhamento do espaço e revezamento das linhas, sendo 23 automóveis de passeio ou quinze utilitários por hora.
Mesmo que a comparação seja feita com o volume de produção atual em São José dos Pinhais, que conta com dois turnos de produção e, não três, tem-se 48 veículos produzidos por hora ou 750 por dia.
“Aqui é mais complexo e maior. Hoje há 851 pessoas somente na montagem no Brasil. Que é o total de funcionários na Colômbia”, relatou Natalia Herrera, mãe e engenheira de produção colombiana de 43 anos, quatro deles na unidade brasileira e há dezenove na Renault, hoje responsável pelo departamento de montagem.
Herrera trabalhou com o pai, aposentado na Renault em seu país de origem, ele na fabricação de pintura e, ela, na qualidade. O pai era seu fornecedor interno. Ela veio ao Brasil em busca de oportunidade de crescimento na carreira, uma vez que a fábrica colombiana é mais compacta.
A vinda das funcionárias estrangeiras faz parte da construção do plano de carreira: “Eu cheguei em um nível que não tinha mais para onde crescer lá. Uma das grandes ambições de funcionários da América Latina é vir para a fábrica do Brasil, que é a maior da região”.
A argentina Paula Boe, 39 anos, há onze meses na unidade brasileira e há onze anos na empresa, é engenheira química, chefe de departamento da qualidade e também é mãe. Seu marido, que trabalhava com ela na montadora, foi transferido junto. Ela recebeu o convite do diretor das fábricas Vagner Mansan, com quem trabalhou no país vizinho, e não hesitou.
Mesmo convite, décadas atrás, foi feito à engenheira química Maria Fernanda Toscano, 38 anos, há 23 na Renault. Ela entrou como estagiária e ascendeu por meio de caminho aberto por Mansan. Hoje é a responsável pela pintura dos veículos e, também, dos parachoques. É mãe e chefia em torno de trezentas colaboradoras.
Pintura tem, proporcionalmente, maior presença feminina
Se analisarmos o mapa por setores gerenciados por mulheres na estamparia, dos 178 empregados, 9% ou dezesseis são do sexo feminino. Na oficina, body shop, são 738 funcionários, sendo 0,8% ou seis, mulheres.
Área industrial com maior representatividade feminina em termos porcentuais a pintura reúne, hoje, 11% de mulheres dentre os 294 operários, ou seja, 33 pessoas. O porcentual, no entanto, evoluiu com o passar dos anos: em 2021 eram 9% e, em 2022, 10%.
E isto não é à toa. Débora Lazarotto, mãe, engenheira química e chefe de produção de 42 anos, sendo quase dezesseis eles na fábrica, contou que a pintura, processo mais longo da linha de montagem, com duração de sete horas, e área de acesso extremamente restrito, requer um cuidado diferente com o acabamento, que tem muitos pormenores. Para trabalhar ali são necessários dois anos de formação profissional adicionais.
De um mergulho e outro dos veículos para retirada do óleo e de outras sujidades, para protegê-los de corrosão e receber a primeira camada de tinta – das três deste processo – o ambiente tem temperatura elevada em que se pode acompanhar o andamento por pequenas janelas, Lazarotto contou que 34% da atividade são automatizadas e que a expectativa é a de que até o início do ano este porcentual aumente.
“Aqui todo cuidado é pouco. Cabelos devem estar presos e cobertos, o perigo é porque se trata de uma fibra e pode grudar na pintura. Não se pode usar óculos, temos que adotar o de sobreposição, nem batom, nem anel muito menos creme, pois o silicone é um detonador de pintura que, a propósito, não leva solvente e é à base de água.” A manutenção do espaço é realizada apenas uma vez ao ano, durante as férias coletivas de dezembro.
Em viagem recente à unidade da Renault de Valência, Espanha, ela relatou que sua chefe, a gerente Maria Fernanda Toscano, trouxe ideia que pode ser importada pela fábrica brasileira:
“O processo de pintura bitom, bastante demandado ultimamente pelo mercado, requer o uso de um plástico filme importado que pode passar pelo forno para curar a tinta. Mas ele não pode derreter. Se conseguirmos retirá-lo uma etapa antes é possível mudar o material para um plástico simples, que não precise passar pelo forno. Com isto o valor seria reduzido a 30% do atual, ou seja, se custa R$ 1 mil passará a R$ 300”.
Digitalização na montagem pode eliminar papel e fazer home office
O segundo processo mais longo é o da montagem, que dura cerca de quatro horas. Pinhais é a fábrica com maior diversidade do grupo, em volume, destacou Natalia Herrera: “Em 2021 estávamos com 6% de mulheres e, hoje, estamos com 8%, de um total de 851 empregados”. Ou seja: elas são 68. E das líderes da área 40% são mulheres.
Alyne Eichenberger, master performance na montagem de veículos de passeio, 31 anos, há dez na fábrica, e que pretende ser mãe no futuro, lembrou que ali são produzidos seis modelos, Kwid, Duster, Captur, Oroch, Stepway e Sandero em 42 versões – a quantidade é alta porque, por exemplo, o veículo com destino à Colômbia não é o mesmo que o que fica no Brasil. Considerando que a capacidade é de produzir 1 carro por minuto por dia podem ser montados 1 mil 290, isto se a fábrica operasse em três turnos.
Segundo Eichenberger o projeto estabelecido no ano passado eliminou 100% dos quadros brancos, cadernos e folhas de sulfite. Em valores, representou a eliminação mais de R$ 400 mil de custos para a Renault no ano: “Se enfileirássemos todas essas folhas daria para chegar à Lua”.
Herrera pontuou também que a conexão das máquinas permite que as equipes se antecipem aos problemas, uma vez que o operador aprende a manusear a tecnologia: “Como na qualidade as máquinas estão conectadas eu consigo, da minha casa, acompanhar todo o processo e verificar onde tenho desabastecimento ou pane. Por isso conseguimos fazer home office”.
Na montagem, segundo ela, 72% dos postos de trabalho já estão na condição do digital, o que permite respostas mais rápidas: “Antes, até chegar à solução, era preciso ler diversos papéis. Hoje há agilidade e rastreabilidade”.
Espaço Metaverso reduziu de 20% a 30% o tempo de produção
Desde novembro do ano passado todo o Complexo Industrial Ayrton Senna pode ser visto e monitorado, em tempo real, por meio do universo digital. Até então todos os dados gerados pelos equipamentos na linha de produção não eram enviados para lugar algum e dependiam do trabalho de funcionários para consolidá-los e, só depois, transformá-los em informação e, consequentemente, em elementos de gestão.
Com a criação do Espaço Metaverso tornou-se possível controlar todo o ecossistema da montadora, o que permitiu redução de 20% a 30% no tempo de produção, a plena verificação de se as partes do processo estão sendo feitas da maneira correta, identificação de falhas e correção imediatas, erradicação do uso de papéis.
Para tanto várias etapas de conectividade vieram sendo adotadas de 2016 para cá. Tudo começou com a instalação de wi-fi nos 2,5 milhões de m² da fábrica. O segundo passo foi conectar todos os equipamentos e armazenar as informações na nuvem. Toda a tecnologia que a Renault veio adotando foi sendo diluída nos ciclos de investimento. No caso do metaverso ele está incluído no investimento de R$ 2 bilhões para adoção de nova plataforma CMF-B e desenvolvimento de novo SUV, além de novo motor 1.0 turbo.
Nayara Mueller, instrutora do sistema de produção da Renault, 34 anos, seis deles na Renault, destacou que graças a esta visão hoje não se tem surpresas com o consumo de energia elétrica, monitorado em tempo real, por exemplo: “Se houver algum desvio na linha, o que faz com que a demanda por eletricidade aumente, na hora é emitido um som alertando e indicando onde está o erro. Antes nós só veríamos quando chegasse a conta de luz”. Com base na ferramenta a meta da companhia é reduzir a fatura em mais 10% em 2023.
Outro ganho com o uso do metaverso industrial é a criação de protótipos online antes de levar o modelo efetivamente à linha de produção. Ou seja: tem-se ganho de tempo e de dinheiro. Por meio do sistema de realidade virtual evita-se retrabalho e pode-se fazer quantos ajustes forem necessários antes de partir para o físico. Não se gasta a mais para fazer protótipo palpável, pois tudo é desenhado no digital. Exemplo prático disto foi o novo motor turbo 1.0, que antes de existir foi criado neste universo e que só foi concretizado quando estava pronto.
Mais um ganho é com o Kwid, que porta três parafusos na roda em vez de quatro. Os testes foram feitos primeiro no ambiente virtual, mostrando que o quarto parafuso era dispensável, o que trouxe redução de custos. Além disto a parafusadeira pneumática que faz essa fixação possui sistema anti-erro humano que, se detectar avaria, para na hora. E vai jogando informação para a nuvem em tempo real.
Curiosidade que, inclusive, rendeu à Renault o título de única indústria do setor automotivo na América Latina reconhecida pelo Fórum Econômico Mundial de Davos: após auditoria realizada na fábrica constatou-se que os funcionários sabiam manusear a tecnologia disponível:
“Porque não basta ter a tecnologia em funcionamento: o operador, afinal, sabe que a parafusadeira está conectada, envia informações em tempo real e qual o benefício disto? Depois desta checagem é que foi concluído que a Renault possui uma cultura de inovação”.
Mueller assinalou que, desde o fim de 2019, os operadores possuem um tablet no seu posto de trabalho, e que, se houver algum problema, o alerta é emitido na hora, para avisar a falta de alguma peça, por exemplo: “Na hora a informação é disparada e são gerados dados que ilustram se há problema maior no abastecimento de peças ou se há muitas resgadas, situação que eleva a insegurança. É possível trabalhar de forma preventiva: precisa orientar melhor o operador? O problema é do fornecedor? Na montagem 80% das linhas têm esse sistema instalado”.
Este processo economiza em torno de 80 minutos da rotina da líder, citou a instrutora, pois antes tudo ia para o papel. Agora ele fica mais próximo do operador, mais no chão de fábrica. E, inclusive, pode fazer home office.
A ferramenta foi adotada na direção de fabricação, o que permite que gerentes de produção, por exemplo, fiquem quatro dias da semana em casa e apenas um na fábrica. Representantes da unidade brasileira estiveram recentemente na fábrica de Valência para falar sobre isto, uma vez que se trata de grande quebra de paradigmas.
A justificativa é que na empresa perde-se o foco facilmente, não se tem o tempo necessário para pensar, pois toda hora vem alguém falar alguma coisa. Diante disto profissionais com cargos de analistas para cima já estão em casa. E, segundo a empresa, é aguardada pesquisa de satisfação de 93% com a medida.
Impressoras 3D geram peças que substituem componentes importados
Separados por uma porta apenas, ao lado do Espaço Metaverso, encontra-se o laboratório de impressão 3D, verdadeira incubadora de projetos da montadora. Criado em 2020 com duas impressoras possui oito e está prestes a receber mais oito.
Alexandre Larsen, criador de projetos de engenharia da Renault, citou diversos casos em que o equipamento proporcionou soluções rápidas e que trouxeram economia.
A parafusadeira, por exemplo, possui uma peça, o copo de rebitadeira, que vinha do fornecedor, era importada da Europa, e custava R$ 550. Em um exercício de nacionalização a versão impressa em 3D sai por R$ 180, ou 67% menos, e ainda tem a vantagem de, se cair no chão, não quebrar. Além de não se submeter à variação do dólar.
Outro caso bem-sucedido é que, por onde se anda na fábrica, depara-se com um robozinho que toca música para avisar que está passando enquanto transporta peças de um canto para outro. Ele possui um scanner que dispara os comandos para andar e parar, é a segurança dele, e custa R$ 10 mil. Mas às vezes ele bate onde não devia e quebra, ou seja, para de funcionar. A equipe desenvolveu então proteção que custa R$ 600 e o robozinho não quebra mais.
“Até o metal está sendo impresso aqui. Em vez do original usinado é impressa peça verde, de plástico com metal, que vai ao forno, o plástico evapora e sobra o metal. Essa peça custa de R$ 2 mil a R$ 3 mil e a usinada R$ 300. Mas esta possibilidade vale para fazer peças críticas, por exemplo, se for uma que viria da Europa, pois elimina-se o tempo de viagem. Em caso de emergência, se quebrar e não der para usinar, já temos a solução. Ainda que custe bem mais caro.”
O volante do Kwid, contou Larsen, teve a ajuda do laboratório: “Se der um problema na hora de montá-lo não se pode continuar colocando as outras peças, senão o prejuízo torna-se muito maior, pois o carro que deu errado vai para o desmanche”. A fim de ampliar a quantidade a ser impressa ele contou que estão fazendo estudo de máquinas para imprimir grandes volumes. O plano é utilizar o espaço para imprimir peças e testá-las antes dos próximos lançamentos. Por ora até um virabrequim e um parachoque já foram impressos. O futuro mora ao lado. Literalmente.