Agora que a poeira começa a baixar, o novo desafio de quem opera no setor automotivo passa a ser o de estimar qual seria, afinal, em condições normais de temperatura e pressão, o tamanho real do mercado doméstico brasileiro de automóveis, caminhões e ônibus.
Como ponto de partida há a certeza de que o mercado real é maior, razoavelmente maior, do que os 2 milhões de veículos que foram registrados no ano passado
Mas, em contrapartida, há também a firme convicção de que ele é menor, razoavelmente menor, do que o recorde de 3,8 milhões de unidades anotadas há alguns poucos anos.
De fato, o anêmico resultado de 2016 decorreu de dois anos seguidos de PIB negativo, e bem negativo, na faixa de 3,5% em cada um dos períodos.
Como decorrência, quase 3 milhões de pessoas perderam o emprego nos últimos 24 meses, elevando para 13 milhões o numero total de desempregados. Raras passaram a ser as casas que nas quais não existia pelo menos um desempregado. Quase sempre mais de um.
Tal cenário dilapidou a confiança das famílias de forma geral em relação ao futuro, o que é fatal para um setor, como o automotivo, cujos produtos, por seu alto valor, exigem financiamentos que só são contraídos desde que os consumidores tenham um mínimo de certeza de que continuarão empregados nos próximos 24 a 36 meses.
Há cerca de um ano, em janeiro de 2016, a projeção com a qual todas as empresas do setor trabalhavam partia do princípio de que o pior já havia ficado para traz e que a tendência, então, seria de relativa estabilidade nos doze meses a frente.
Ledo engano. Mais 1,2 milhão de pessoas – de consumidores em potencial – foram demitidos no ano passado. E, agora, com o agravante de que, desta fez, o demitido passou a ser o chefe da família, o provedor mor da casa. E cada vez com mais frequência gente de colarinho branco, em cargo de chefia. De gerente para cima.
Convenhamos, por melhores, mais adequados e mais atraentes que sejam os novos produtos oferecidos ao mercado, não há desejo de compra de automóvel novo que não esmoreça – talvez melhor seria dizer faleça – num cenário dantesco, quase kaficaniano, desta natureza.
Ainda, mas quando se considera que, para piorar ainda mais o quadro, os bancos a cada mês tornaram-se mais seletivos. De cada dez pedidos de financiamento para compra de automóveis, apenas três ou quatro passaram a ser aprovados. E seis a sete simplesmente recusados.
E mesmo os poucos “felizardos” que conseguiam ter seu crédito aprovado, tinham de concordar com taxas de juros cada vez mais elevadas, com a alegação de que o aumento da inadimplência assim recomendava para garantia da saúde do sistema financeiro.
Trata-se, inegavelmente, de um daqueles legítimos dilemas tostinianos: os juros estão cada vez mais altos por que a inadimplência é cada vez maior ou, quem sabe, a inadimplência é que esta cada vez mais alta por que os juros estão cada vez mais elevados?
E a que se considerar, ainda que as novas gerações, nascidas e definidas no mundo do Uber, não tem a menor atração por automóveis. Quem tem filho com menos de trinta anos de idade em casa sabe que, para esta geração, o direito irrestrito de ir e vir e vir mudou do automóvel para um simples app no celular capaz de garantir um táxi, o Uber incluído, a qualquer hora e em qualquer lugar
Na área específica de caminhões, muito propriamente definidos como bens de produção, as vendas dependem das regras de financiamento do Finame mas, sobretudo, de um mínimo de confiança das empresas transportadoras e dos carreteiros de que haverá cargas a serem transportadas em quantidade suficiente para garantir que a prestação será paga.
Convenhamos mais uma vez: depois de dois anos seguidos com queda de 3,5% no PIB, como acreditar nessa premissa? Nem mesmos a perspectiva de uma safra recorde em 2017, conjugado com a atual elevação dos preços das commodities agrícolas no mercado internacional, é capaz de dar esta segurança mesmo a quem se sentir atraído, e muito, por tantos avanços tecnológicos e de eficiência nos novos produtos que as montadoras estão colocando no mercado.
E quanto ao ônibus, na área rodoviária, em particular, quem poderia projetar, com um mínimo de certeza, quanto e em que condições serão definidas as novas regras para o transporte de passageiros por estradas, sem a quais não a como qualquer empresa do setor ter um mínimo de chance de projetar seu futuro?
Na área urbana, por sua vez, quem seria capaz de projetar o que se dará com as tarifas nesta época em que – deste o levante dos vinte centavos que inegavelmente colocou os cidadãos nas ruas e mudou os rumos do Brasil – esta questão se transformou no centro da disputa entre vários e distintos rumos ideológicos?
Tudo isto explica por que os números registrados no ano passado – que com pequenas variações, provavelmente positivas, deverão ser repetidos neste ano – foram, por assim dizer, tão medíocres em relação aos registrados nos primeiros anos desta década.
Na verdade, para quem conhece e acompanha este setor, eles não foram exatamente medíocres. Muito ao contrário. Com tudo contra, tal como e específica o exposto acima, o fato de se ter alcançado dois milhões de unidades comercializadas, é quase que um verdadeiro milagre.
Difícil imaginar outro País que teria conseguido tal resultado nestas mesmas condições. Dois milhões de unidades, o sétimo ou oitavo maior mercado do mudo. Com tudo contra…
Nosso destino seria, então, rapidamente recuperar aquelas vendas de 3,8 milhões de unidades e, assim, consolidar a posição de quarto maior mercado do mundo, acima da Alemanha, de longe o maior da Europa, e quase o dobro do mercado da França e da Itália?
Não exatamente. Muito daquele recorde, todos sabemos, foi artificial. No caso dos automóveis o resultado foi anabolizado por excesso de confiança dos consumidores em relação ao futuro e financiamento em até sessenta meses.
No caso dos caminhões o artifício veio de juros negativos que tornavam conveniente até vender a casa na praia para comprar caminhões novos e aplicar a diferença no mercado financeiro.
E quanto aos ônibus os anabolizantes vieram a bordo de programas do tipo Caminho da Escola, excelentes e socais, sem dúvida, mas, infelizmente, hoje sabemos, sem a devida e necessária dotação orçamentária.
Com tudo colocado num multiprocessador – a versão atualizada dos antigos liquidificadores – a verdade, segundo ecoam as paredes mais bem informadas da Anfavea – estaria um pouco acima de simples média aritmética. Algo mais próximo da média geométrica. Três milhões por ano, pouco mais, pouco menos.
As apostas estão abertas…