A relação de fornecedor com cliente é, na maior parte das vezes, marcada por intensas disputas e negociações que, em alguns casos, podem até acabar em ruptura. Embora o jargão ‘ganha-ganha’ seja sempre utilizado, na prática o que se nota é uma imensa desconfiança das duas partes.
É fato que nos negócios não há espaço para grandes concessões, portanto o tal de ‘ganha-ganha’ pode soar como romantismo. Muitos de nós utiliza a expressão Amigos, Amigos… Negócios À Parte, não é mesmo? É um indicador da complexidade de se misturar afetividade ao tema.
Proponho uma reflexão aos executivos e donos de negócio quanto ao método e filosofia de trabalho que deveriam adotar na construção de verdadeiras parcerias cliente-fornecedor. Especificamente na indústria automotiva, há décadas ocorrem grandes fissuras no relacionamento de negócios de montadoras com as fabricantes de autopeças – que começam a aflorar já nas discussões iniciais para redação do contrato de fornecimento.
Longas negociações são normalmente conduzidas até que se chegue ao pacto formal e podemos imaginar que, embora assinado, o contratado nem sempre satisfaz integralmente as duas partes.
Em uma indústria complexa como a dedicada ao desenvolvimento e produção de veículos existem pontos importantíssimos em discussão e negociação:
a) A precificação. É usual observarmos que os volumes previstos de encomenda da montadora junto ao produtor da peça na prática não se realizam, o que pode comprometer o resultado financeiro do fornecedor. Uma saída aqui é a construção de cenários vinculando volumes a preços: isso traz mais flexibilidade na vida real e pode evitar futuras demandas ou disputas. Outro ponto de interesse é que muitas vezes a metodologia adotada pelo potencial fornecedor na definição do preço não é acurada com a alocação indevida de custos e despesas já existentes, tornando o preço proposto desconfortável para o cliente. É o que podemos chamar de cálculo burro;
b) O equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Em uma economia instável e com memória viva da inflação como a brasileira, ao longo do fornecimento as bases de custo inicialmente previstas podem ficar fora da realidade, prejudicando o fornecedor. É extremamente importante que as partes estabeleçam, de comum acordo, mecanismos de ajuste de preços por fatores externos à gestão das empresas ou sobre os quais não há como interferir – itens como câmbio, salários e acordos ou dissídios coletivos, variação de preço de metais ou insumos como a energia, devem de alguma forma ser identificados para ajuste futuros de preços, seja para cima ou para baixo;
c) A garantia. O desenvolvimento de uma aplicação segue processo refinado e longo para evitar falhas do produto final no campo – algo importantíssimo em qualquer situação e mais ainda quando a peça é considerada item de segurança. Como, apesar de todo vigor do projeto, falhas podem ocorrer na vida real, as partes contratantes devem definir as condições de correção de defeitos e a cobertura ou reembolso das perdas causadas;
d) As especificações do produto. É preciso avaliar com atenção as exigências no desenho da peça para garantir que esta possa ser fabricada sem grandes dificuldades no chão de fábrica e atenda as demandas de durabilidade e funcionalidade. Já vivenciei situações em que o fornecedor busca oferecer soluções de engenharia ao cliente com robustez excessiva, que na verdade só faz o produto mais caro sem agregar valor na aplicação;
e) A venda no mercado de reposição. Sabemos que usualmente as margens praticadas nas vendas de fornecedores às montadoras são apertadas – o montante de ganho tem relação direta com o volume das vendas. Nas negociações pode acontecer de a montadora não permitir que o fabricante da peça faça a venda de parte da produção no mercado de reposição. Esse impedimento, que pode ter sua razão por investimentos em ferramental, por exemplo, com certeza diminuirá a chance do fornecedor obter melhor remuneração futura na produção do item;
f) O aporte para investimentos em ferramental e/ou em linhas de produção. É importante que as partes se entendam sobre eventual suporte financeiro da montadora ao fornecedor, permitindo que esse mitigue as necessidades de capital próprio, ou emprestado, para a instalação de novas linhas de produção ou expansão das existentes devido aos novos negócios;
g) As programações de encomenda e as suas revisões. Notamos, vez ou outra, mudanças bruscas nos cenários de negócio demandando correções nas quantidades encomendadas. Não é possível que só uma das partes imponha sua vontade: há necessidade de um bom acordo prevenindo antecipadamente os limites de variação nos volumes, assim como sua absorção em dado período de tempo. O caso pode ser mais grave se parte da produção depender de material importado, pois neste caso a reação para cortar ou aumentar as encomendas exige mais tempo da cadeia de fornecimento;
h) Iniciativas de melhoria contínua e ganhos de produtividade. No cenário de intensa concorrência e demandas cada vez maiores dos clientes finais é vital o estabelecimento de mecanismos claros e de metas a serem cumpridas pelo fornecedor ao longo do período de fornecimento com o objetivo de diminuir custos. De fato o fornecedor precisa sempre atuar para encontrar caminhos de desempenhar melhor seu papel. Faz bem para o negócio!
É possível melhorar o relacionamento cliente-fornecedor no setor automotivo, sem dúvida. A confiança mútua no cumprimento dos pontos do contrato de fornecimento, a partir de regras razoáveis, ajuda na construção de verdadeiras parcerias nos negócios.
José Rubens Vicari é administrador de empresas pela FGV com pós-graduação em finanças. Atuou por vinte anos como CEO de empresas metalúrgicas no setor de autopeças. Mentor voluntário para empresas startups pela Endeavour. Seu blog é www.senhorgestao.com.br.