São Paulo — Carlos Zarlenga renasceu para o mundo automotivo exatamente 43 dias após ter renunciado à posição de presidente da General Motors para a América do Sul, cargo que ocupou nos últimos cinco anos. Mas engana-se o leitor ao imaginar que ele retornou à liderança de outra fabricante de veículos, ou até para o ramo de autopeças. Zarlenga fundou um escritório de investimentos e operações para adquirir empresas na indústria da transformação, a Qell Latam Partners, ou QLP.
Um dos sócios de Zarlenga é Barry Engle, ex-Ford, ex-GM e CEO da Qell SPAC, fundada por ele mesmo em setembro de 2020, em São Francisco, nos Estados Unidos, uma empresa de capital aberto na Nasdaq que tem como objetivo a aquisição de ativos e a execução de investimentos dedicados ao desenvolvimento da mobilidade. A expansão desse novo modelo de negócios para o setor industrial aqui no Brasil terá, também, Fernando Valim, experiente executivo com passagens por diversas empresas brasileiras e multinacionais, como um dos fundadores e sócio da QLP.
Na prática Carlos Zarlenga terá que inovar, propor novas alternativas às já conhecidas maneiras de conduzir os negócios e estabelecer planejamentos de longo prazo a partir da aquisição de empresas, sobretudo da cadeia automotiva. Trabalhar na gestão e criar o que ele chama de plataformas, ou o agrupamento de mais de uma organização, será uma das etapas dessa nova forma de empresas atuarem em conjunto para gerar maior eficiência e valor de mercado.
“Estamos olhando para aquisições em operações regionais das multinacionais de grande porte, que possam valer de US$ 500 milhões a US$ 3 bilhões.”
Zarlenga se divertiu com as especulações nesses últimos quarenta dias de que poderia assumir a presidência de outra fabricante de veículos: “Não sairia de uma montadora para pegar outra”.
Nas diversas entrevistas concedidas enquanto presidente da GM, em sua enorme sala em São Caetano do Sul, SP, Zarlenga deixava a TV sempre conectada nas operações das bolsas de valores. Muitas vezes para responder às perguntas ele usava um exemplo da cotação de uma empresa ali na tela para demonstrar seu raciocínio sobre como funcionava esse mecanismo na cadeia automotiva. Agora sua atuação será mais vigorosa nesse universo de captação, investimentos e geração de valor, numa comparação com a execução dos planos de operação regional de uma multinacional: “Sempre estive ligado nesses movimentos da economia. Isso não mudou. Aliás, estou neste momento vendo na TV o que acontece com as empresas nas bolsas de valores”.
Tudo aconteceu muito rápido nessa nova fase de Carlos Zarlenga. Em realidade não foram 43 dias até o início de uma nova jornada:
“Um dia estava na GM e no outro estava quinze horas aqui. Não precisei de férias porque isso é tão empolgante, as oportunidades são enormes. No domingo às 3 da tarde já estou procurando algo para fazer antes mesmo de começar a semana”.
Confira os melhores trechos da entrevista concedida à reportagem:
Qual foi a motivação para mudar radicalmente a sua carreira profissional?
Eu gosto muito da GM, aprendi muito lá, criei grandes amizades dentro e fora da empresa, foi uma experiência sensacional. Mas também sempre gostei de observar os movimentos de toda a cadeia industrial e de entender como ela é e como poderia ser. Neste momento temos uma diferença no timing das coisas que acontecem na América do Sul e lá fora. Enquanto em 2030 diversos países terão 60% das vendas concentradas em veículos mais modernos de emissão zero, aqui serão 15%. Essa transição que já está acontecendo é três, quatro vezes mais lenta na América do Sul. 80% das empresas do setor automotivo na região são multinacionais, que estão focadas na transformação que ocorre em suas matrizes. Então há pouco espaço para construir soluções locais, de ponta, realmente novas. Outro problema é que essas operações não estão olhando para o longo prazo dos mercados sul-americanos. Essa é a oportunidade que queremos trabalhar: ir até o headquarter dessas empresas e adquirir as operações no Brasil para criar plataformas grandes com outras empresas nacionais e gerar eficiência, reduzir custos, trazer engenharia para cá, desenvolver tecnologias que vão nos acompanhar por muito tempo. É um momento único na indústria. Eu quero ficar no Brasil, gosto muito daqui e da indústria automotiva e acho que é o momento ideal para lançar uma empresa de aquisições que possa gerar maior valor. Sinceramente, são tantas motivações que não foi uma decisão muito difícil.
Quem foi atrás do outro primeiro? Você ou Barry Engle?
(risos) Nós nos conhecemos há muito tempo, mas a decisão foi minha e uma vez que tomei a decisão procurei o Barry.
E quem faz parte dessa nova empresa de investimentos?
A Qell Latam Partners, ou QLP, nasceu com quatro sócios: Barry Engle, o fundador e CEO da Qell SPAC, Francisco Valim, ex-CEO da Via Varejo, da NET, da Oi, da Nextel, um executivo com bastante experiência, o investidor Sam Gabbita, também da Qell, e eu.
Qual o objetivo das aquisições de empresas? Melhorar essas operações, conectá-las em plataformas e depois se desfazer do negócio para obter algum retorno?
Não é possível fazer aquisições na indústria automotiva com mentalidade de curto prazo. Evidentemente no longo prazo há oportunidades para fazer muitas coisas com essas empresas, IPO, dentre outras opções. O ponto é que somos investidores de longo prazo. Vamos buscar os ativos que eventualmente não fazem mais sentido para as multinacionais e que sejam capazes de continuar gerando valor com uma gestão mais eficiente e em plataformas. Queremos construir essas possibilidades, mas não ocuparemos qualquer posição executiva. Acreditamos no nosso potencial como empresa de investimentos porque podemos concentrar os esforços gerando mais competitividade quando o negócio principal é o que está operando aqui, e não perseguindo os objetivos globalizados como o das multinacionais. Todos olham as oportunidades na América do Sul sem necessariamente concentrar seus esforços nessa região.
Quais os setores da cadeia de fornecedores que podem ser alvos das primeiras aquisições?
Estamos trabalhando no portfólio em conjunto com uma consultoria global e diria que temos oportunidades em muitos setores da cadeia de fornecimento. Há espaço para promover a complementariedade de atividades das empresas. Muitas estão focadas na produção de um item, mas podem aumentar o escopo oferecendo melhores soluções para o cliente na própria cadeia ou para o OEM. Vamos atuar em elos chave dessa longa e promissora cadeia, mas ainda não posso dizer quais serão.
Qual o capital financeiro que a Qell Latam Partners possui para fazer essas aquisições?
Também estamos construindo essa equação buscando interessados nos investimentos que estamos propondo. Posso dizer que temos capital no Brasil e internacional para fazer aquisição de empresas de grande porte, com valor de US$ 500 milhões a US$ 3 bilhões, que é o nosso foco. Fazemos três coisas aqui: a estratégia de investimento, o contato com investidores ou parceiros e trabalhamos na gestão para criar valor após a aquisição. Mas sem a estratégia os outros pontos não se conectam.
A Qell SPAC fechou um acordo por meio de outra empresa, a Lilium, com a Azul para operar eVtols. Qual o envolvimento da QLP nessa operação?
A Qell é uma plataforma que fará investimentos em muitos negócios ligados à mobilidade. Essa é uma transação SPAC [single purpose aquisition company], uma operação de investimentos na bolsa, a Nasdaq, que permitiu a fusão da Qell com a Lilium GmbH no valor de US$ 3 bilhões, para o desenvolvimento de eVtols. A Lilium e sua equipe estão à frente do acordo com a Azul e Barry Engle faz parte do conselho dessa nova empresa. O foco da QLP está nas aquisições dentro do setor industrial de transformação na região, mais especificamente no automotivo, o que já é bastante trabalho.
Quais são seus objetivos com essa nova empresa?
O mais importante é conseguirmos concluir a construção das plataformas de negócios com as empresas que vamos adquirir. Esse seria um primeiro objetivo. Mas vamos realizar investimentos com o objetivo de longo prazo.
Sobre essa mudança radical na sua rotina como executivo: há diferenças na maneira de trabalhar numa estrutura como a da GM e, agora, numa empresa de aquisição e investimentos?
São coisas bem diferentes. Mas o que eu mais gostava na GM era justamente ter que usar a cabeça para solucionar problemas. E, aqui, o que fazemos o tempo todo é usar a cabeça para solucionar problemas (risos). As pessoas que se juntaram aqui são profissionais excepcionais. Estou aprendendo bastante e, também, estou muito empolgado com o que podemos fazer.