SÓ PARA ASSINANTES: Montadoras de leves, pesados e fornecedores produzem no País com energia elétrica de fonte renovável
São Paulo – O caminho da descarbonização na indústria automotiva vai muito além da tecnologia adotada nos motores. Ele começa dentro das fábricas de montadoras e de fornecedores, que precisam tornar cada vez mais verde e limpo seus processos produtivos. Neste ponto o Brasil está mais avançado quando comparado a outros países por causa da sua abundância de fontes renováveis para geração de energia, caso da hídrica e outras que estão ganhando mais espaço na matriz energética como eólica, solar, biomassa e nuclear. Até 2022 83% da energia elétrica gerada no País veio de fontes renováveis, mais do que o dobro da média global, que foi de 38%, de acordo com dados do think tank amber, relatório que reúne dados sobre o setor de energia global.
O think tank amber também apontou que em 2022 a geração de energia a partir de fontes renováveis na União Europeia chegou a 22% da demanda total da região. Nos Estados Unidos, de acordo com o relatório Sustainable Energy in America 2023 Factbook, a geração de energia limpa representou 23% do volume anual. Na China a matriz energética limpa representou cerca de 47% do total consumido pelo País em 2022, de acordo com o CEC, Conselho de Eletricidade da China, que projeta crescimento para 51% até 2025.
Como se vê a indústria instalada no País está mais avançada quando comparada com outras regiões como Ásia, Europa e Estados Unidos, de acordo com Marcus Vinícius Aguiar, presidente da AEA, Associação Brasileira de Engenharia Automotiva: “A nossa matriz hídrica, que representa grande fatia do fornecimento para o setor automotivo, nos coloca à frente. Nos últimos cinco anos o País também avançou muito em outras áreas como eólica e solar”.
Muitas fábricas já adotaram painéis fotovoltaicos, seja em um espaço do terreno ou no telhado de algum prédio e, desta forma, geram energia limpa em suas operações, enviando ao sistema nacional e recebendo em troca um abatimento na sua conta mensal. Mas outras soluções começam a ganhar corpo no País, caso das fazendas solares, que são instaladas em grandes áreas rurais, gerando energia limpa que será comercializada por clientes, sendo que parte desse público é formado por companhias automotivas, que em alguns casos investem no projeto ou apenas compram a energia.
O presidente da AEA também lembrou as pequenas hidrelétricas construídas por montadoras, que geram energia junto com a companhia que opera em seu Estado e recebem abatimento da conta, sendo a Volkswagen um exemplo desse tipo de operação. A montadora possui uma PCH, pequena central hidrelétrica, construída no rio Sapucaí, em São Joaquim da Barra, SP, capaz de gerar 20% de toda a energia elétrica que consome a montadora nas unidades da Anchieta, em São Bernardo do Campo, São Carlos e Taubaté, todas elas localizadas no Estado de São Paulo.
Da energia anual consumida pela Volkswagen 99% vêm de fonte hídrica e 1% de eólica, e as quatro fábricas instaladas no País são certificadas com o I-Rec, Certificado Internacional de Energia Renovável, que comprova o uso de energia elétrica 100% renovável. A entrega do documento foi feita este ano pelas fornecedoras de energia Auren Energia e Enel Brasil em evento realizado na fábrica Anchieta.
A Honda também gera sua própria energia, mas em um projeto diferente, por meio do seu parque eólico instalado em Xangri-lá, RS,que foi construído em 2014 e começou a operar em 2015. Ele é capaz de gerar toda a energia utilizada em suas duas fábricas, centro de distribuição de peças e escritórios, tornando seu consumo 100% limpo. De 2015 a 2022 a unidade eólica gerou 630 mil megawatts, energia que seria suficiente para produzir 900 mil carros, de acordo com a Honda.
Para esta operação a Honda realiza mapeamento anual da previsão de vento na região do parque, para ter uma projeção da energia que será gerada, sendo que em alguns meses a geração é maior do que o volume consumido, sobrando energia que é convertida em crédito para ser abatido no futuro, o que tem acontecido com mais frequência nos últimos anos, por causa da produção automotiva menor.
A fábrica da BMW instalada em Araquari, SC, produz seus veículos com energia 100% limpa, sendo que 80% do consumo anual são provenientes de fonte hídrica e 20% de solar. Toda esta atividade tem certificação de que a energia é proveniente de fonte renovável. Dos 20% de energia solar consumidos por ano 6,5% são captados por painéis solares instalados na unidade desde 2020, com perspectiva de novos investimentos. Mas para isto a operação no Brasil depende da liberação de novos valores da matriz.
A Nissan, com fábrica instalada em Resende, RJ, não possui um parque eólico, mas desde 2020 compra apenas energia elétrica gerada pelo vento para manter sua produção no País, também com certificado I-Rec. A decisão de mudar a matriz energética faz parte do plano global que mira a redução da pegada de carbono de suas operações, em busca da neutralidade até 2050. Na fábrica da Renault, emSão José dos Pinhais, PR, a fonte de energia para produção de veículos é 100% hídrica, com certificação renovável, junto com outras soluções adotadas para reduzir a pegada de carbono, como o processo de geração de energia a partir da queima de biomassa para aquecimento da água, reutilizando sobras de madeira originadas de atividades industriais e o sistema Recovery Energy, que recupera energia dos compressores para aquecer a água utilizada na área de pintura.
Na Volkswagen a adoção do biometano, combustível de fonte renovável, para substituir o gás natural em algumas áreas da fábrica, é mais um passo em direção à descarbonização da produção. A migração para este combustível verde ocorrerá de forma gradual, ainda em 2023 na unidade de Taubaté e em 2024 na Anchieta. O gás será adquirido da Raízen, que garantirá a geração a partir de fontes renováveis e, segundo a montadora, a troca do gás natural de origem fóssil pelo biometano reduz em mais de 90% as emissões de CO2.
Na BMW a busca por opções para substituir o gás natural na produção também está acontecendo e o biogás é visto como uma solução interessante, junto com outras tecnologias que tenham impacto ambiental menor, sendo que no ano passado a montadora já conseguiu eliminar o gás natural do processo de montagem. Para a AEA o biometano pode ser uma boa opção porque ajuda a reduzir as emissões e o País tem muita matéria-prima para usar por causa do seu complexo agrícola, que gera biomassa que pode ser transformada em biometano.
Pesados
No segmento de veículos comerciais o foco em reduzir as emissões durante a produção é tão importante quanto nos automóveis e o uso de energia limpa também é uma realidade por parte nas fábricas de caminhões e ônibus. A Scania, com unidade em São Bernardo do Campo e que faz parte do Grupo Volkswagen, realiza compra de energia anual dentro do mesmo contrato da montadora de leves, com certificado de renovável e fonte 100% hídrica. A empresa também possui uma pequena geração de energia solar na unidade, a partir de painéis fotovoltaicos, que é usada para abastecer equipamentos elétricos como empilhadeiras e rebocadores.
De acordo com Bruno Montanheiro, responsável pela área de meio ambiente da Scania no Brasil, na Holanda a montadora é referência na geração de energia solar para produção de veículos e aqui no Brasil estuda possibilidades de avançar, mas sofre com algumas restrições nos galpões, que foram construídos há 65 anos, para instalação dos painéis.
A Scania tem planos de ampliar para até 75% a participação do biometano para reduzir as emissões de carbono da sua produção e da rede de concessionárias. Esse objetivo deve ser alcançado em 2025. Aqui no Brasil esse essa matriz energética já representa 37%, enquanto na América Latina é de 46%. Para chegar aos 75% será essencial o mercado livre de gás começar a operar no País em 2024, garantindo o fornecimento contínuo de biometano para a unidade, que substituirá o gás natura hoje consumido em maior volume pela produção de cabines:
“Em 2019 realizamos um projeto piloto em São Bernardo do Campo com o biometano sendo usado em todos os processos e o avaliamos como um substituto positivo do gás natural. Desde então estudamos formas de abastecer a unidade com biometano porque o seu transporte realizado por caminhões tinha alto custo, além das emissões geradas pelos veículos”, disse Montanheiro. “Um segundo passo será trocar o diesel usado em veículos de serviços e em teste de motores por um combustível menos poluente e o HVO é uma boa alternativa. O mercado todo está olhando para isso: é uma questão de tornar o combustível economicamente viável e incentivar sua produção”.
A fábrica instalada em Resende, RJ, da Volkswagen Caminhões e Ônibus, mais uma empresa do Grupo Volkswagen, é abastecida por energia certificada pelo selo I-Rec, de fonte 100% hídrica. A geração de energia a partir de painéis fotovoltaicos também está nos planos de curto prazo da companhia, que possui projetos em andamento, em fase de aprovação, de acordo com Marcelo Vidal, seu gerente executivo de engenharia de manufatura. A expectativa é de que até dezembro os painéis comecem a ser adotados na unidade.
Para reduzir o consumo de energia na produção e em outras áreas da fábrica a VWCO começou a adotar lâmpadas de led na iluminação e, apenas em 2022, com o volume trocado, a economia foi de 2 mil megawatt hora, equivalente a um mês de consumo. Para 2023 o projeto seguirá e a expectativa é de avançar para uma redução de dois meses de consumo. No médio prazo a empresa também olha para o biometano, que é considerado uma grande oportunidade para substituir o gás natural na operação, mas aguarda formas de garantir o abastecimento contínuo para a unidade de Resende.
A Mercedes-Benz compra energia limpa de fonte quase 100% hídrica para manter sua operação no País, abastecendo sua fábrica de São Bernardo do Campo e a de Juiz de Fora, MG, mas esta possui um “prédio verde”, com 473 m² de painéis solares instalados no telhado, que produzem até 10 mil kWh/mês, o suficiente para abastecer todo o prédio e ainda fornecer o excedente para outras áreas da fábrica. De acordo com a empresa essa geração de energia significa economia de R$ 8 mil por mês.
Fornecedores também avançam
Na operação da Continental no Brasil, com fábricas instaladas em Ponta Grossa, PR, Guarulhos, SP, Várzea Paulista, SP, e Macaé, RJ, a energia utilizada também é certificada pelo selo I-Rec, garantindo a matriz renovável e limpa de fonte hídrica. Mas a companhia já estuda outras opções de compra no mercado. A captação da energia solar por meio de painéis solares também é realizada na Bahia, ainda como piloto, e deverá avançar para a unidade de Várzea Paulista, também como projeto piloto, sem grandes volumes, segundoArnd Schmitz-Simonetti, seu coordenador de sustentabilidade.
O uso de energia renovável faz parte do plano de ser neutra em carbono em todo o mundo até 2050, acompanhando as principais montadoras com projetos parecidos. Uma segunda meta é aplicar o conceito de economia circular em todas as suas plantas no mesmo período, usando materiais de fonte renovável ou 100% reciclável, projeto que está mais avançado no Brasil: “Até 2050 um grande desafio será a capacidade dos nossos fornecedores de se tornarem neutros em emissão de carbono. Na nossa operação não vejo nenhum entrave para atingir a neutralidade no prazo estipulado, mas temos que olhar para a cadeia de fornecedores também”.
A Schaeffler utiliza energia 100% hídrica em sua fábrica no País, também com certificado I-Rec, ainda sem usar fonte eólica ou solar, mas discussões internas já acontecem sobre uma possível instalação de placas fotovoltaicas. Até 2033 a empresa quer neutralizar toda a sua produção e, em 2040, seus fornecedores também serão neutros na emissão de carbono.
A troca de lâmpadas convencionais por lâmpadas de led foi outra solução adotada pela Schaeffler nos últimos dois anos para reduzir o consumo de energia e, consequentemente, o seu volume de compras, mesmo que de fonte renovável. O projeto conta com sistema inteligente que controla a luminosidade de cada lâmpada, conforme o nível de entrada de luz do ambiente. A fonte de calor dos fornos também já foi substituída há alguns anos e utiliza energia elétrica renovável:
“Para o futuro neutro em carbono um dos nossos grandes desafios é a cadeia de fornecimento, porque é mais difícil controlar as ações de todos eles”, ”, disse Karl Heinz August, diretor de operações América do Sulda Schaeffler. “Mas uma vantagem, aqui no Brasil, é a matriz energética, que quase sempre é limpa e renovável. Nossa área de compras já trabalha visando a contratos futuros com essa demanda de neutralidade em carbono.”
A Niterra, antiga NGK, possui duas usinas solares em sua fábrica de Mogi das Cruzes, SP, uma com 3 mil placas fotovoltaicas instaladas em uma parte do terreno e outra com 1 mil placas no telhado de um dos prédios. Com as duas usinas a empresa consegue gerar 210 megawatt-hora por mês, que correspondem a 10% da energia consumida na unidade, enquanto os outros 90% são comprados de fonte hídrica e eólica, mas a empresa não revelou o porcentual exato de cada matriz. A empresa investiu cerca de R$ 6,3 milhões na instalação das usinas.