São Paulo — Segunda-feira, 11, 9 AM East Time, ou horário da Costa Leste nos Estados Unidos. Pode ser pura coincidência, mas exatamente neste momento, às 11h00 de Brasília, DF, a Ford mostrou ao mercado financeiro passos firmes e decisivos da sua estratégia global de transformação.
Ted Cannis, principal executivo para veículos comerciais na América do Norte, durante a Conferência Morgan Stanley Auto 2.0, resumiu naquela manhã, em dois slides, o que será feito e o que viria, horas mais tarde, a ser concretizado no Brasil.
Impulsionar o crescimento, melhorar a execução e acelerar a transformação era o título do slide que propunha uma grande mudança na operação automotiva. Ali Cannis mostrou que a Ford vai “acelerar a reestruturação dos negócios com baixo desempenho”, “reduzir custos” e “modernizar e simplificar” suas operações.
Uma hora mais tarde, às 10h da manhã na Costa Leste, as ações da Ford na Bolsa de Nova Iorque, cujo papel é operado com a denominação F, começavam a subir e chegavam pela primeira vez a US$ 9,09. E às 16h00 de lá, 18h00 no Brasil, fechava o pregão com a ação no seu melhor valor naquele dia: US$ 9,30.
É provável que o desempenho da Ford na Bolsa naquele dia esteja mais relacionado à conversa de Ted Cannis com o mercado financeiro do que com os acontecimentos no Brasil. Pouco antes das 16h00 no Brasil, quando a publicação Detroit Free Press saiu primeiro com a notícia, enquanto o comunicado oficial da Ford em português já pipocava nas redações brasileiras, a ação era negociada a US$ 9,18. Até o fim do pregão houve uma valorização de apenas 1,3%.
A boa notícia de tudo isso é que a Ford incluiu o Brasil no centro da sua estratégia global, que é oferecer produtos de maior valor agregado como picapes, SUVs e o Mustang, além dos novos modelos híbridos, elétricos e autônomos. É parte da apresentação que mostrou como a virada no negócio automotivo será “competindo como um desafiante” no jogo global.
Ah, mas fecharam uma operação de produção centenária, deixando órfãos não apenas trabalhadores e suas famílias, concessionários, fornecedores e comunidades inteiras, como em Camaçari, BA, mas também milhares, milhões de consumidores que admiravam a marca e seus produtos.
A surpresa do anúncio causou uma inicial comoção, de fato, em muitas pessoas. Ex-colegas da companhia [atuei do outro lado do balcão durante seis anos como assessor da Ford] suspirando ao telefone. Jornalistas alvoroçados e ao mesmo tempo atônitos com a notícia. Executivos de outras empresas perplexos. Entusiastas da marca tristes. E muitos consumidores indignados.
Como buscar respostas para tantas questões e emoções? É preciso dizer algo difícil a todos esses: o capital não tem sentimentos.
Neste momento não é mais necessário apontar as razões oficiais que a Ford apresentou para deixar de produzir no Brasil. Aliás, toda a mídia de economia e negócios do Brasil e do mundo, profissionais e influenciadores de outros setores abordaram esta semana o fim da produção nacional da Ford. Seria chover no molhado.
Mas é possível identificar após anos de cobertura do setor e a oportunidade de conversar com os presidentes de todas as montadoras, sistemistas, fornecedores e concessionários que este movimento da Ford não é sistêmico. É circunstancial.
Olhando com mais atenção para a estratégia global das outras fabricantes dá para compreender que o Brasil e a América do Sul têm uma relevância diferente em seus objetivos. São caminhos que, ao menos por enquanto, não apresentam indícios de que mudarão de rumo.
Outra coisa: basta ler nas entrelinhas. A Ford já havia sugerido que fecharia todas as operações fabris no Brasil em 2019. No comunicado do fim da produção de caminhões e do New Fiesta em São Bernardo do Campo, SP, a Ford disse que concentraria seus esforços em picapes, SUVs e no Mustang. Ou seja, o Ka estava com os dias contados. E o EcoSport, que criou o segmento de SUVs compactos e alimentou os cofres durante bons anos, mas atualmente perdia feio para os concorrentes, também corria sérios riscos sobre seu futuro.
Assim é possível afirmar, por ora, que a Ford não está puxando a carroça da desindustrialização automotiva no País.
Claro que o ambiente de negócios no Brasil está longe de ser o mais competitivo. Com o México, só para ficar em um exemplo. Não é de hoje e não tem nada a ver com a pandemia. De uma forma geral toda indústria de transformação sofre com essa condição inerente ao País e os seus executivos vêm dando esse recado.
No caso da Ford os prejuízos na América do Sul e a adoção da estratégia global que, além de vender os mesmos produtos em todas as regiões pretende concentrar a produção dos modelos mais baratos onde há melhor equação de custos [leia-se China e Índia], definiram o destino da produção nacional.
Nos Estados Unidos gente envolvida com a Ford afirmou que até 15 de dezembro a decisão de encerrar a presença produtiva centenária no Brasil ainda não havia sido tomada.
Até mesmo esses estadunidenses e os brasileiros residentes por lá com quem conversamos ficaram surpresos com a forma como os stakeholders [trabalhadores, fornecedores, rede de concessionários e o público em geral] foram comunicados. Todos quase ao mesmo tempo. AutoData apurou que os presidentes dos sindicatos de Camaçari e de Taubaté, SP, receberam uma ligação 10 minutos após o comunicado ter sido distribuído para a imprensa.
Ainda é muito cedo para imaginar qual será a Ford que teremos no Brasil. Estará, certamente, muito longe das centenas de milhares de veículos 0 KM vendidos anualmente. Sim, porque descontando o Ka e o EcoSport o volume de vendas do novo portfolio não tem potencial, pelo menos nesse primeiro momento, para fazer 50 mil unidades ao ano.
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