Seja no chão de fábrica, na gerência ou no board elas celebram seus desafios e conquistas
São Paulo – A garra e a determinação de mulheres têm aberto, pouco a pouco, espaço para que elas se coloquem no ambiente de trabalho, demonstrem que capacitação nada tem a ver com gênero e busquem a tão almejada ascensão na carreira. E embora ainda haja discrepâncias, como salários distintos para funções idênticas, preconceito disfarçado de hábito cultural e pouca empatia com profissionais que também são mães, felizmente esse cenário vem, gradativamente, mostrando evoluções. O que inclui setores majoritariamente masculinos como o automotivo.
Contribui ainda para o avanço da participação de mulheres nesta indústria uma herança da pandemia: os trabalhos remoto e híbrido. Ambos possibilitaram a mulheres, muitas delas também mães, equilibrarem melhor suas demandas e rotinas, ampliarem a confiança em seus conhecimentos e produzir mais e melhor. A licença-maternidade de seis meses também exerce importante papel nesse processo.
Diante do contexto, a partir do momento em que as próprias empresas querem mulheres, inclusive para ocuparem cadeiras que embutem tomadas de decisão, elas têm se sentido mais à vontade tanto para iniciar uma carreira como para galgar posições e buscar seu crescimento profissional dentro das fabricantes de veículos.
Mulheres que inspiram, seja no chão de fábrica, na gerência ou como integrante do comitê que reúne o mais alto escalão das companhias, contaram à Agência AutoData, com orgulho, os desafios e conquistas que marcam suas trajetórias profissionais e são celebradas em 8 de março, Dia Internacional da Mulher.
“A mulher é o que quer e trabalha onde quer”
O ano era 2021 e Laís de Oliveira era costureira na Faurecia, fornecedora do setor automotivo, em Resende, RJ, quando soube da abertura do segundo turno da fábrica da Nissan na cidade. Ela, que já havia tentado ingressar na montadora em outras oportunidades, desta vez agarrou aquela que seria sua: o programa de diversidade da companhia incentivava a admissão de mulheres, ainda que o horário de trabalho invadisse a madrugada.
Oliveira, que frequentou a escola até o ensino médio, é uma mulher negra, mãe solteira de dois filhos de pais diferentes e os sustenta com a ajuda de sua mãe, que também trabalha fora. Em oito meses na função de operadora de produção, no chão de fábrica, começou a vislumbrar a possibilidade de mudar de cargo ao se interessar pela atividade de inspeção de peças que saem da prensa da estamparia.
“Eu queria aprender mais e ser uma das primeiras mulheres a trabalhar nesse setor. Ia lá todos os dias, perguntava como poderia fazer para ingressar ali. Queria fazer a diferença e, ao mesmo tempo, proporcionar uma vida melhor para os meus filhos, hoje com 3 e 11 anos.”
Laís Oliveira, inspetora de peças que saem da prensa na estamparia da Nissan
Pois bem, a promoção chegou e nesse curto espaço de tempo. E, com ela, o valor da hora de seu trabalho cresceu 65%. A partir do incremento da renda ela pôde pagar aula particular para um dos filhos e contribuir mais com sua mãe no orçamento doméstico: “Tudo ficou muito melhor”.
A inspetora ou, como chamam internamente, retocadora, disse, aos risos, que a maior dificuldade na nova função não é exercê-la, mas lidar com hábitos culturais masculinos:
“Embora também tenha muita empatia, parece que em ambiente em que os homens são maioria alguns deles se sentem na posição de dar muitas instruções para as poucas mulheres ali, e questionar tudo o que fazemos, como se não soubéssemos executar. Mas eu não dou mole e mostro meu trabalho todos os dias. A mulher é o que quer e trabalha onde quer. Quero incentivar para que haja cada vez mais meninas nesse setor”.
Oliveira contou que encontra tempo para frequentar a academia e fortalecer as pernas, já que boa parte da jornada do seu serviço é em pé. Hoje, aos 30 anos, ela começa a sonhar em conseguir mais uma façanha: voltar a estudar.
“Assim que o meu filho mais novo crescer mais um pouco quero fazer um curso técnico ou mesmo uma faculdade, na área de mecânica, que adoro. Meu negócio é sujar a mão de graxa, por a mão na massa.”
O próximo passo é o atalho que projeta para, em uns cinco anos, tornar-se supervisora em sua área.
“Competência não tem gênero”
Foi o que disse Letícia Serra, 34 anos, gerente de desenvolvimento de cabinas da Mercedes-Benz em São Bernardo do Campo, SP. O ano era 2008 e ela, então estagiária, já pensava que gostaria de seguir na empresa, porém, tinha em mente que o caminho não seria fácil. Ao se formar conseguiu ser contratada como funcionária terceirizada para ocupar, temporariamente, a vaga de uma mulher que estava saindo em licença-maternidade. Depois participou do programa de trainee, divisor de águas que considerou fundamental para sua efetivação.
“É muito difícil para nós, mulheres, nos firmarmos num ramo de trabalho que é ainda majoritariamente masculino. Eu vi muita evolução ao longo desses 14 anos que estou na montadora. Ouvia muito que as mulheres vestiam a máscara de um homem para se sobressair. E lembro que quando entrei queria me firmar como mulher, engenheira, como uma pessoa dedicada e competente mas, ainda assim, uma mulher. Sempre acreditei que competência não tem gênero. As competências são desenvolvidas de acordo com seus interesses e com a rede de apoio que faz isso acontecer.”
Ela contou que para concretizar seu plano sempre traça metas de pequeno, médio e longo prazos, tanto para a vida profissional como pessoal, e que buscou absorver o máximo possível de dicas que recebeu, o que a levou a continuar aperfeiçoando o inglês e a focar nos estudos de alemão.
A oportunidade não tardou a aparecer: passou dois anos na Alemanha como assessora de diretor de desenvolvimento na área de cabinas: “Participava de reuniões em alemão, nem todos falavam inglês. Era um desafio e tanto, mas o idioma me aproximou muito da cultura deles”.
Quando soube que teria a possibilidade de concorrer à vaga de gerente procurou uma coach para entender como deveria se portar para lidar com os desafios, e que mesmo com o tema da diversidade já sendo trabalhado pela empresa ela não queria ser escolhida apenas por ser mulher – embora reconheça a necessidade da existência de cotas.
Serra voltou ao Brasil como líder de equipe de catorze pessoas, muitas delas seus pares antes da viagem, outras tantas com mais idade. Aí surgiu outro desafio com todos falando a mesma língua:
“No início me sentia muito insegura. Porque é algo intimidador você estar em ambiente predominantemente masculino e com pessoas com faixa etária maior do que a sua. Tive muita dificuldade de me expor. E é algo que trabalho até hoje. Existe também a questão de síndrome da impostora: em muitos momentos nós, mulheres, questionamos se merecemos mesmo estar ali. Mas quem sabe da nossa história somos nós, que sabemos o que tivemos de superar para estar ali”.
Letícia Serra, gerente de desenvolvimento de cabinas da Mercedes-Benz
A gerente de desenvolvimento contou que, quando foi promovida, sequer conseguia sentar na cadeira do seu antigo chefe: sentava-se ao lado dos antigos colegas para mostrar que estava ao lado deles: “Mas, com o tempo, vi que tinha muito mais coisas na minha cabeça do que na deles. Hoje trabalhamos em uma harmonia conquistada por todos nós ao longo desse período”.
Dentro do seu planejamento de curto, médio e longo prazos a engenheira, hoje noiva, tem como objetivo casar-se no fim do ano e ter filhos: “Esses dias me peguei pensando que somos muito carentes de exemplos, de engenheiras gestoras que cresceram e conciliaram vida pessoal e profissional. Então me inspiro em pessoas de outros países, como na Alemanha, que conseguiram esse equilíbrio, pois nem consigo pensar que uma coisa anularia a outra. Sendo assim quero me tornar exemplo para as gerações seguintes”.
“Vim para deixar um legado, fazer algo diferente”
Mãe de trigêmeos pré-adolescentes e com experiência de três grandes processos de fusão no currículo trabalhando, na maior parte do tempo, nas tesourarias, embora seja uma profissional da área de tecnologia, Cristina Cestari, 51 anos, desde o fim do ano passado é a CIO da Volkswagen América do Sul.
Além do novo desafio, o cargo que ocupa hoje anteriormente tinha escopo somente para o Brasil. Com sua chegada a posição foi expandida para a região e, com isso, ela passou a integrar também o Comitê Executivo da Volkswagen, composto pelo COO, por vice-presidentes e diretores de áreas estratégicas.
Sempre desempenhando atividades em ambientes de trabalho em que os homens eram absoluta maioria ao longo de sua carreira Cestari foi criando uma espécie de casca contra atitudes que tinham traços de desconfiança e preconceito e, para driblar essas adversidades, usou como armas a assertividade, a transparência e a coragem.
“Se eu não sabia fazer o que estava sendo designado a mim eu dizia. Assim como se identificasse uma solução eu não hesitava em apresenta-la. Eu vinha da área de tecnologia e produção mas, em um dos meus primeiros empregos, ganhei respeito ao mostrar onde se podia economizar.”
Dessa forma o caminho da bacharel em processamento de dados foi mudando de rumos e alçando voos mais largos: “O máximo que pode acontecer é dar errado. Então opto por ser pragmática diante dos desafios que me são postos, tanto na vida pessoal como profissional. Sempre penso que vim para deixar um legado, fazer algo diferente, e trato de por isso em prática”.
Aos 39 anos, quando descobriu sua gestação de trigêmeos, em 2010, estava sendo sondada para uma promoção em um conglomerado bancário e, antes que fizessem a proposta, teve a coragem de se antecipar e fazer o anúncio aos seus superiores.
Ela contou que, pegos de surpresa, admitiram que fariam um convite, mas recuaram. Tempos depois admitiram que ela seria a pessoa certa para a missão e, grávida, tornou-se diretora. A primeira mulher C-level, que reúne os executivos seniores mais altos de uma companhia para conduzir processo de fusão de três tesourarias.
“Acho que fui a precursora do home office, pois lá pelo quinto mês de gravidez dos trigêmeos não conseguia dirigir e quase não saía de casa, então muitas reuniões foram realizadas na minha casa.”
Em 2022, depois de também trabalhar com gestão de patrimônios, ela decidiu que tiraria um período sabático para ficar mais com os filhos e repensar os rumos de sua carreira. Quando pensou que participaria mais ativamente da rotina dos três filhos, no segundo semestre do ano passado, um headhunter a sondou para o processo seletivo que a levou à Volkswagen.
“O carro virou um artigo que se transforma, com muito mais tecnologia do que no passado. E então, embora nova no setor, eu poderia contribuir com minha experiência no digital. E com os processos de transformação.”
Embora haja a possibilidade do trabalho híbrido na Volkswagen em São Bernardo do Campo, SP, Cestari contou que tem trabalhado mais presencialmente até pelo fato de ser nova na empresa e, diante disso, o momento do jantar em sua casa é quase como uma reunião corporativa, disse, aos risos.
“Para equilibrar maternidade e trabalho, ao longo desse período, sabia que teria de fazer escolhas e que alguns eventos importantes da vida dos meus filhos eu perderia. E tudo bem. Fui a melhor mãe que pude ser até hoje. Acho que os desafios fazem parte do processo para que possamos crescer como pessoa e como profissional. Diante dos desafios procuro ser divertida e dizer: vamos escolher nossas batalhas do dia.”
Cristina Cestari, CIO da Volkswagen América do Sul