Processo de recebimento de valores referentes a salários atrasados e verbas rescisórias de cerca de 600 operários foi concluído no fim de 2023
São Paulo – Chegou ao fim imbróglio que se arrastou por sete anos, desde o decreto da falência da Karmann-Ghia em São Bernardo do Campo, SP, em 23 de novembro de 2016. Os pagamentos de salários atrasados e verbas rescisórias aos cerca de seiscentos trabalhadores da época, iniciado em 2022, foi concluído em dezembro.
A companhia, que abriu as portas em 1960 na Via Anchieta, fabricou os icônicos SP1, SP2 e o Karmann-Ghia coupé, veículos que por décadas foram sinônimo de status para os brasileiros. Nos últimos anos de atividade a Karmann-Ghia realizava serviços de estamparia e ferramentaria para sistemistas e montadoras.
O desenrolar da negociação que parecia não ter um horizonte passou por pelo menos três suspensões da falência, acampamento de meses dos operários diante da fábrica a fim de tentar preservar o espólio da massa falida – o que não impediu a retirada de maquinários, que seriam utilizados para o pagamento –, e pela expectativa de tornar o local uma cooperativa em que os próprios operários fariam a autogestão da produção.
Foi a partir do interesse da vizinha Wheaton, fabricante de frascos de vidros, também situada na Anchieta, que a situação começou a ser revertida e uma saída concreta foi apresentada. Em 2018 a empresa já havia sinalizado a vontade de alugar um dos pavilhões da área de 5 mil m2. Seu desejo era efetuar a compra, o que foi postergado para 2020, uma vez que havia disputas judiciais envolvendo a Karmann-Ghia, o que tornou inviável a sua aquisição.
Entretanto, no ápice da pandemia, a Wheaton anunciou o arremate do parque industrial em leilão, em valor de cerca de R$ 58 milhões, embora a companhia não o confirme. De acordo com a empresa a decisão integra seu plano de expansão, mas o uso do espaço, que inicialmente seria o de armazenamento dos produtos, ainda está sendo projetado.
Segundo o vice-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Carlos Caramelo, que acompanhou o drama dos operários desde o início, a Karmann-Ghia foi vítima de sucessivos golpes, o que dificultou encontrar uma solução de curto prazo para a fabricante de autopeças e seus funcionários.
“Quando pensávamos que alguém assumiria a empresa e os trabalhadores poderiam voltar a trabalhar ou, então, ao menos receber seus direitos, surgia mais um revés. Novos investidores anunciavam a penhora de alguma máquina como garantia para obter um empréstimo e depois descobríamos que o equipamento já havia sido penhorado antes. Ou então eles conseguiam recursos e simplesmente desapareciam da empresa. A Karmann foi alvo de muita bandidagem.”
Trabalhadores acamparam na fábrica por meses a fim de tentar reter o espólio, mas maquinários foram sendo retirados por clientes e credores. Foto: Divulgação/Sindicato dos Metalúrgicos do ABC/Adonis Guerra.
Outra situação lembrada pelo sindicalista foi que, diante da indefinição de pagamentos tanto a credores como a fornecedores e funcionários, empresas começaram a retirar, via decisão judicial, seu ferramental, que estava em comodato com a fabricante. Caso da Fiat, maior cliente e responsável por 70% do faturamento da Karmann-Ghia. E de empresas terceirizadas que reivindicavam a posse de equipamentos assegurada em contrato.
“Em 2022 tivemos vitória definitiva na Justiça, quando os pagamentos de atrasados começaram a ser efetuados. No entanto isto significou que uma parcela de trabalhadores apenas, que integravam ação coletiva do sindicato, seriam contemplados.”
Os demais, que moveram processos individuais, foram recebendo aos poucos e, segundo ex-funcionário que procurou a Agência AutoData e pediu para não ser identificado, todos os profissionais receberam valores referentes a salários atrasados e verbas rescisórias.
“Não é possível afirmar que os depósitos referiam-se exatamente àquilo a que tinham direito. Muitos operários com quarenta anos de empresa acabaram conseguindo o mesmo que um com dez anos. O dinheiro que entrou foi gerado pela venda do terreno para a Wheaton e também pela retomada de ativos que o administrador judicial conseguiu reverter para o trabalhador. Mas, mesmo assim, consideramos uma vitória, pois pudemos encerrar de forma satisfatória a situação da falência da Karmann-Ghia. Muitas empresas não têm história com este mesmo desfecho.”
Instalações da Karmann-Ghia foram adquiridas pela vizinha Wheaton, fabricante de vidros, em 2010. Foto: Divulgação/Sindicato dos Metalúrgicos do ABC/Adonis Guerra.
O princípio do fim
As dificuldades financeiras da Karmann-Ghia começaram com a crise econômica de 2008 e a consequente queda na demanda pelos serviços, agravada pela suspensão das linhas de produção dos Volkswagen Kombi e Gol G4. Em 2015 a empresa operava com apenas 40% do faturamento.
A empresa passou pelas mãos de diversos gestores, incluído integrante da família real, dom Eudes Maria Regnier Pedro José de Orleans e Bragança, trineto do imperador dom Pedro II e bisneto da princesa Isabel, de 2010 a 2014, quando vendeu a empresa a Maristela Nardini, que pagou apenas uma das 52 parcelas do valor acordado, de R$ 17,8 milhões.
Em maio de 2016, após pedir reintegração de posse, a titularidade da empresa voltou a dom Eudes. Mas não houve o acerto de contas e, em novembro daquele ano, foi decretada a falência. Na época o passivo ultrapassava R$ 300 milhões. Do total R$ 8 milhões eram dívidas trabalhistas, R$ 50 milhões eram dívidas bancárias e com fornecedores e R$ 140 milhões com tributos.