Pleito ao governo solicita mudança nas regras do Ex-tarifário para importar kits SKD com apenas 10% de imposto nos próximos 36 meses, postergando cronograma de produção nacional
São Paulo – Em dezembro passado, em evento com a presença dos seus principais executivos e autoridades, a chinesa BYD comunicou que a “construção dos seus sonhos no Brasil” – um trocadilho com o próprio nome da empresa, Build Your Dreams – estava a pleno vapor e que até o carnaval, que já passou, sua megaoperação na Bahia começaria a montar carros. A promessa que estampou as manchetes da mídia nacional, inclusive desta Agência AutoData, no entanto, passa longe dos fatos e dos pleitos que a BYD tem levado ao Governo Federal.
Ao mesmo tempo em que faz enormes estoques de carros importados e convive com atrasos nas obras por causa de denúncias de trabalhos análogos à escravidão a fabricante chinesa pede ao governo um regime de exceção especial de tarifas de importação para trazer kits de veículos parcialmente montados na China e iniciar esta operação de armação final no País somente em algum momento do segundo semestre.
Trata-se de um movimento totalmente atípico solicitar a redução do Ex-tarifário dos atuais 20% para 10%. Esta redução consta em dois documentos obtidos por AutoData, protocolados no Sistema Eletrônico de Informações do Governo Federal, SEI, para a importação de kits SKD, ou partes de um veículo parcialmente montados, de cinco modelos, um deles ainda inédito no portfólio da BYD.
A fabricante quer trazer da China os modelos Song Plus, Dolphin e Yuan, além da picape Shark e uma inédita picape compacta, parcialmente montados. Praticamente todos seus itens chegariam de navio ao Brasil já quase prontos. No documento, para justificar o pedido de exceção, a BYD argumenta que são modelos com eficiência energética muito superior aos modelos similares produzidos no País e enfatiza, incluindo no texto original do Ex-tarifário, a palavra “incompletos”, ou seja, que seriam agregados alguns poucos itens totalmente nacionais durante o processo de armação na fábrica da Bahia.
Picape compacta inédita em seu portfólio estaria nos planos para o Brasil
No entanto, a BYD não especifica quais seriam esses itens nacionais, tampouco demonstra que já tem contratos ou sequer negocia com qualquer fornecedor local. O Sindipeças, entidade que representa a cadeia de autopeças, reiterou por meio de seu presidente, Cláudio Sahad, durante o Seminário Megatendências 2025, realizado por AutoData, que a BYD ainda não procurou nenhum dos seus associados. Sahad enfatizou que “enquanto a outra marca chinesa que está, de fato, comprometida com a produção nacional já tem negócios com alguns fornecedores locais a BYD ainda não iniciou qualquer tipo de conversa com a cadeia de autopartes instalada no País”.
Em documento enviado ao MDIC em 19 de dezembro de 2024 a BYD diz que “avalia itens específicos que podem ser adquiridos localmente para incrementar a produção no Estado da Bahia. Esse modelo progressivo possibilitará que componentes vitais, como a bateria – cuja montagem local agrega valor ao produto final – sejam integrados ao processo sem comprometer a essência do Ex-tarifário original, mantendo-se o entendimento de que o kit essencial do veículo vem desmontado e, portanto, caracterizado como SKD”.
Especialistas do setor automotivo consultados por AutoData argumentam que a BYD sugere nacionalização de itens cruciais como a bateria sem especificar como se dará esse processo, ao mesmo tempo em que pleiteia condições especiais, modificando o texto original e abrindo brechas na Lista de Exceções à Tarifa Externa Comum, LETEC, mecanismo que o Governo Federal flexibilizou no ano passado. Uma das novidades da LETEC seria a utilização do Ex-tarifário, com taxação menor para itens específicos, incluindo os kits SKD, mas definindo cotas para essa modalidade de importação.
O objetivo seria estimular o início da operação local e, ao mesmo tempo, inibir a importação de veículos prontos da China. No entanto, nos documentos apresentados pela BYD ao MDIC não constam os volumes específicos de kits SKD pretendidos para essa operação nos próximos 36 meses. Há também uma proposta para utilizar Ex-tarifário na fase seguinte de produção nacional com kits CKD, completamente desmontados. Mas o texto não é específico sobre como se daria esse regime especial que teria uma taxação de 5%.
Cronograma descumprido
Algo que vem chamando a atenção desde que a BYD anunciou pela primeira vez sua estratégia de produzir no Brasil, criando aqui sua maior operação internacional, resultado de investimento de R$ 5,5 bilhões, são os constantes adiamentos do cronograma. E em vez de a empresa argumentar de forma transparente as razões de alterações nos prazos, muitos deles justificáveis, o que se testemunha são anúncios aumentando as apostas no País.
No início de dezembro a reportagem de AutoData esteve em Camaçari, BA, para conhecer as instalações ainda em construção e um novo cronograma, que dava conta de que a armação de kits SKD teriam início ainda no primeiro trimestre de 2025. Na ocasião Stella Li, CEO da BYD para as Américas, garantiu que os atrasos ocorreram por questões pontuais e que a operação começaria na data anunciada. Ela ainda brincou dizendo que “enquanto vocês estiverem celebrando o Carnaval nós estaremos comemorando o início da produção”.
A revista AutoData de dezembro foi além e publicou um raio-x da breve história da BYD no Brasil, que prometia para o início do ano a contratação de 1 mil funcionários, que já teriam, inclusive, uma centena deles naquele momento na China sendo preparados para treinar essa primeira leva de mão-de-obra de chão de fábrica. Até março a BYD teria no seu quadro total de funcionários 3 mil contratados – dos 20 mil que pretende ter no País.
Até agosto deste ano, de acordo com anúncio feito em Brasília, DF, no dia seguinte ao evento com a presença de jornalistas na Bahia, diretamente ao presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, 10 mil funcionários estariam trabalhando na fábrica de Camaçari. E, a partir desse momento, segundo Alexandre Baldy, vice-presidente sênior da operação brasileira, um sistema de propulsão híbrido-flex seria acoplado ao modelo Song Pro. Depois deste momento de êxtase quase nada se falou oficialmente sobre esses assuntos tão comemorados, como demonstra a foto abaixo.
Lobby poderoso
Assim, até agora nenhuma dessas afirmações feitas por diversos executivos da BYD se transformou em realidade. Inclusive os pleitos feitos diretamente ao MDIC para uma condição mais que especial de Ex-tarifário para a importação de kits SKD por um período que pode variar de dezoito a 36 meses, vão na contramão de todas as declarações públicas da BYD.
O primeiro pedido de alteração extraordinária da LETEC para os automóveis Song Plus, Dolphin e Yuan foi protocolado em 23 de fevereiro [Nº Processo SEI Público: 19971.000141/2025-30]. O segundo pedido, para as picapes Shark e outra versão mais compacta e inédita, em 9 de março [Nº Processo SEI Público: 19971.000190/2025-72] justamente quando já deveria haver operação fabril nos prédios que, até onde a reportagem apurou, ainda nem estão prontos.
Executivos, especialistas e consultores ligados diretamente à cadeia automotiva consultados, que concordaram falar sobre este tema sob a condição de anonimato, disseram que essas manobras da BYD prejudicam o desenvolvimento da indústria nacional porque podem causar distorções nas regras comum a todos.
Nenhum desses interlocutores está surpreso ou critica a forma como a BYD tem se relacionado com os representantes do governo federal, cuja função é receber e encaminhar as demandas não só da fabricante chinesa mas de todas as outras empresas. O perigo é se esse lobby está ou não transcendendo as vias normais desse jogo de empresários e os poderes em nível municipal, estadual e federal.
Pedro Kutney, editor da revista AutoData, entrou em contato com a comunicação do governo da Bahia, questionando se o Estado tem acompanhado os recorrentes atrasos no cronograma e se a BYD estaria cumprindo tudo o que acordou para a sua instalação lá. Em nota, esta foi a resposta obtida:
“O governo do Estado acompanha a atuação da BYD na unidade de Camaçari, por meio da Secretaria da Desenvolvimento Econômico, que segue realizando visitas semanais à planta para realizar vistorias técnicas. O governo do Estado trabalha de forma integrada com as instituições federais, órgãos de fiscalização, sindicatos e representantes do setor produtivo, para garantir que o desenvolvimento econômico ocorra em harmonia com a valorização dos trabalhadores”.
Consultada, a assessoria de comunicação da BYD disse que estava buscando junto aos seus executivos respostas às questões enviadas por AutoData referentes aos seus pleitos sobre o Ex-tarifário abordados nesta reportagem. Mas até o prazo final para esta publicação as respostas não chegaram. Assim que obtivermos esse material atualizaremos a reportagem com a posição oficial da empresa.
Portanto, o que se tem na mesa, neste momento, são demandas que poderão, de fato, oferecer uma vantagem competitiva a apenas uma nova fabricante nacional em detrimento de investimentos que já estão em curso e outros que podem vir a ser anunciados muito em breve.